A decisão de me assumir cartunista

Foi só em meados de junho do ano passado (2024) que eu tomei uma decisão que já vinha rondando fazia um tempo: passar a fazer tirinhas e cartuns com mais frequência. Me assumir de fato como um cartunista.

Não só o designer gráfico ou ilustrador, mas alguém que abraça o humor em quadrinhos como linguagem principal de expressão.

Essa escolha não apareceu do nada. Vem de longe, da época em que eu era moleque e recortava as tirinhas dos livros didáticos (pro desespero dos meus professores)Enquanto a maioria colava figurinhas nos álbuns oficiais, eu montava o meu, feito só de tirinhas, coladas com cuidado em folhas avulsas, na intenção de preservar esses achados para reler mais tarde.

Eis algumas páginas dos meus “álbuns” de tirinhas que ainda tenho

Tive acesso a muitos quadrinhos ao longo da vida, de ação, de aventura, mas o que sempre me pegou de verdade foram as tirinhas e os cartuns. Sempre me fascinou essa capacidade de condensar tanto em tão pouco espaço. Um pensamento, uma crítica, uma ideia, uma piada boba ou genial, tudo cabe ali, em três ou quatro quadrinhos (ou até menos, ou até mais).

Ao longo do tempo, me aventurei com tirinhas em alguns momentos. Fiz algumas experiências, rabisquei ideias, criei personagens. E mesmo nos períodos mais recentes, quando meu foco estava voltado para a ilustração mais comercial, a vontade de fazer tirinhas continuava ali, me cutucando. Sempre flertei com esse formato, mesmo que de forma tímida ainda, e sem muita constância.

A verdade é que eu nunca consegui dar a atenção que isso merecia. Estava sempre dividido, tentando evoluir meu traço, me adaptar ao mercado, correr atrás de projetos, pensar em como conseguir sustento. Eram outras urgências falando mais alto. Mas lá no fundo, as tirinhas nunca deixaram de me chamar.

Outra coisa que acabou servindo de gatilho para que eu pudesse me voltar para as tiras e cartum, foi por causa de um certo desencantamento com o mercado de ilustração, principalmente nos ramos que eu mirava há um tempo atrás, que eram o de livros didáticos e infantis.

Estava me esforçando bastante na prospecção. Buscava editoras, mandava portfólio, fazia contatos… estava sendo bem baixo e aquém do esperado. Quando vinha algo da área, era quase sempre frustrante. Propostas indecentes, valores baixíssimos, prazos absurdos, condições completamente insalubres. E isso foi me minando, aos poucos.

Ao mesmo tempo, começaram a pipocar por todos os lados as IAs generativas de imagem. E aquilo, naquele momento, me caiu como uma ameaça real. Era como se a profissão estivesse sendo empurrada pra escanteio.

Como se tudo aquilo que eu levei anos pra construir, estudar e lapidar estivesse sendo encoberto por uma onda de imagens geradas por inteligência artificial.

E nem vou entrar aqui em todas as questões que estavam fervendo dentro de mim naquela época, porque esse texto já está ficando longo e nem é esse o foco, mas falei sobre isso aqui.

Mas o fato é que tudo isso contribuiu pra um certo esvaziamento do meu entusiasmo com a ilustração profissional. Eu já andava me dedicando mais a outras áreas profissionais, e o desenho, que sempre foi uma paixão, estava começando ficando mais pra escanteio.

Foi aí que, meio sem grandes expectativas, comecei a desenhar por desenhar. Sem pretensão, sem briefing, sem cliente, sem pensar em mercado. Comecei a fazer tirinhas e cartuns como um hobby, como uma válvula de escape mesmo, e resgatar essa minha paixão pelo cartunismo.

Eu queria justamente isso: que o desenho deixasse de ser uma obrigação, ou precisasse me dar retorno financeiro, e voltasse a ser leve, espontâneo, bobo mesmo.

Durante um tempo, vivi uma certa tensão interna com relação a isso. Porque havia em mim a crença de que meu desenho precisava ser algo mais elevado. Algo mais poético, mais simbólico, mais carregado de sentido. Isso porque eu tenho esse outro lado também. Um lado que gosta de escrever, que já fez poemas, contos, reflexões… Um lado mais etéreo, talvez mais espiritualizado, influenciado por filosofias que admiro, como o budismo e outras vertentes mais sutis da espiritualidade.

Eu achava que, por ter esse lado mais sensível, mais reflexivo, eu deveria usá-lo como motor criativo. Como se meu desenho precisasse carregar esse mesmo peso do sagrado, do profundo, do transformador.

A liberdade de não ser sério

O que realmente tem motivado a desenhar, atualmente, é outra coisa. É inventar situações engraçadinhas. É criar personagens com expressões exageradas. É distorcer a realidade de um jeito cômico.

Tenho, sim, vontade de explorar mais do poético e do contemplativo nos meus trabalhos. Mas quero que isso venha quando de forma espontânea, se forçar a barra demais, como se fosse uma obrigação, mas que seja de maneira leve, sem precisar forçar uma profundidade artificial.

Pra mim, esse espaço do cartum é quase como um refúgio. Onde posso explorar esse meu lado mais lúdico um pouco, mesmo que o resto do dia esteja cheio de boletos, compromissos, dilemas existenciais e notícias ruins. Talvez por isso eu evite trazer temas muito críticos, políticos ou polêmicos pros meus quadrinhos.

Não é que eu não tenha algum posicionamento, seja político, social, ou coisa do tipo, e que esteja alienado de tudo. Acho que válido quem usa os quadrinhos como ferramenta pra questionar e cutucar as coisas absurdas da realidade(faço isso também, ora ou outra).

É só que eu já lido com essas complexidades em outros momentos e espaços da minha vida. Já encaro as sombras do mundo de outras formas. Então, quando sento pra desenhar, prefiro que seja um momento de respiro. De bobagem saudável (pra mim).

Uma personalidade que me inspira muito nesse sentido é o poeta Manoel de Barros, o meu poeta preferido do coração, rsrs. Os versos do Manoel têm esse jeito lúdico, curioso e despretensioso. Como um retorno ao encantamento da criação, quase como uma criança que se maravilha com o mundo antes de estar imersa e moldada pelos condicionamentos da sociedade. E isso me toca de um jeito, que me faz querer levar meus trabalhos com cartum para esse lado também. Onde a graça e o encantamento pode vir de qualquer bobagem. Como diria um amigo meu “Um Refúgio Imaginário de um Mundo Hostil”

Claro que, volta e meia, escapa uma alfinetada aqui ou ali. Um comentário mais ácido, uma cutucada sutil (ou nada sutil, dependendo do caso).

Mas, no geral, o que eu tento com minhas tirinhas é preservar um pouco do meu lado lúdico. Resgatar esse olhar infantil que ainda existe em mim e que, de alguma forma, me ajuda a continuar acreditando que nem tudo precisa ser tão sério, tão sofrido, tão engessado.

E foi justamente quando eu resolvi levar a sério o meu não ser sério com os quadrinhos que eu me senti mais livre. Mais inteiro. Como se, enfim, o desenho voltasse a ser o que sempre foi pra mim, antes de qualquer cobrança externa: um território de liberdade, de imaginação e de afeto.


Ainda não sei fazer Newsletter Direito

Escrevo em blogs há muito tempo, mas sempre acabei focando mais no texto do que em deixá-lo mais dinâmico e menos monótono. Acho que isso é muito um sintoma dos tempos atuais, em que o conteúdo precisa ser sintetizado e dinâmico ao máximo para que possa ser consumido de forma rápida, pois o tempo é escasso e a atenção é cada vez mais dispersa.

Acho perigoso isso, corre-se o risco de ficarmos superficiais demais, mas também digo que sou vítima dessa condição. Por isso, acho que espaços como esses, de conteúdos mais densos, precisam ser investidos mais tempo e atenção e não um lugar de consumo de conteúdo que tenha caráter de urgência, velocidade.

Mas também quero cuidar do tempo de quem se dispõe a ler, então vou tentar melhorar nas próximas edições para ir deixando o conteúdo mais amigável.


Por enquanto é isso

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